Audiodescrição
A VISTA É FREE E NÃO É [ENG BELOW]
Quando, em 2017, a terceira maior rede hoteleira do Brasil, BHG S.A – Brazil Hospitality Group, anunciou 100% da compra do Hotel Marina Palace e o encerramento de suas atividades por cerca de 4 anos, Maria Baigur decidiu fotografar do interior para o exterior a mesma janela de todos os andares desse hotel tradicional. Um jogo de repetição e diferença da vista avassaladora da orla carioca. O Marina, conhecido por seu letreiro neon vermelho, que Marina Lima cantara no final da década de 80, está localizado no metro quadrado mais caro do Brazil. Avenida Delfim Moreira, número 630. Um hotel à beira-mar, no Leblon. Seu metro quadrado, em 2021, valia em média 40.000 mil reais. Baigur, enquanto fotografava a série Marina (ainda inédita), avistou de sua cobertura um trabalhador dormindo no telhado de um dos muitos prédios da redondeza.
É do encontro entre uma artista trabalhando na cobertura de um hotel e um trabalhador dormindo no telhado de outro prédio que surge a série Angelus. Maria Baigur, em 2018, decide entrar em hotéis da orla carioca para forjar essas imagens do alto dos telhados da zona sul – região nobre da cidade do Rio de Janeiro. A foto número 1, onde vê-se um corpo em repouso, em busca de um pedacinho que seja de sombra, sobre um telhado inclinado, com o sol à pino, parece ser exceção do conjunto de imagens capturadas por essa artista. Baigur passa a fotografar homens, em sua maioria, negros, trabalhando nos telhados. As referências cinematográficas e bibliográficas da série chegaram depois: O anjo exterminador (1962) de Louis Buñuel + Asas do desejo (1988) de Win Wenders + a leitura de Walter Benjamin da pintura Angelus Novus (1920) de Paul Klee.
Baigur me mostrou pela primeira vez as imagens de Angelus no início de 2021. Estávamos confinadas. Eu, mãe de uma bebê pandêmica e uma criança, sem escola. Baigur, mãe de outra criança, também sem escola. A pandemia revelava, duramente, a sobrecarga de trabalho invisível e não pago necessário para maternar. Do outro lado do fosso, o confinamento também materializava os serviços indispensáveis para que nós (da classe média) pudéssemos cumprir o isolamento social em casa. Homens montados em bicicletas carregadas de sacolas nos entregavam as compras de supermercado e os remédios da farmácia. Entregadores terceirizados atravessavam uma cidade agora deserta em suas motos para nos entregar pedidos de comida de restaurante. Foi preciso, para além de comida e de remédio, manter as casas funcionando – a luz, a água, o esgoto, a retirada de lixo, a rede telefônica, a internet, etc. Dessa rede imensa de trabalhadores que mantiveram nossas casas, não sabemos nome nem rosto.
Milton Santos, na década de 1990, contrapõe homens que fazem múltiplas viagens de avião ao redor do mundo e conseguem atravessar velozmente as cidades aos “homens lentos”. “Homens lentos” seriam gente comum, gente pobre que precisa atravessar a cidade para trabalhar, diariamente. Santos, em sua análise, dá valor à lentidão – em detrimento da velocidade. Os “homens lentos” seriam os únicos capazes de fabular, produzir novas relações, no movimento arrastado, com a cidade e o mundo. Os homens velozes, por sua vez, não teriam essa capacidade de fabulação, pois seu imaginário estaria enrijecido por imagens pré-fabricadas. Imagens reproduzidas pelo capital. Os “homens lentos”, na pandemia, foram cuspidos para a superfície em dupla exposição. Estavam expostos ao vírus e expostos na cena de seus trabalhos, in-dis-pen-sá-veis. Nós, burgueses, confinados, trabalhando de casa, passamos a observá-los em movimento.
O homem “comum” trabalhando é o que Maria Baigur captura em Angelus. Mas na captura dessas cenas de trabalho invisível, precário e mal pago a paisagem da cidade carioca vai se construindo diante de nós. A selva de pedra, a floresta tropical, o mar, os iates, as pessoas na areia da praia, as antenas parabólicas, as antenas parabólicas, as antenas parabólicas, e os homens trabalhando, trabalhando, trabalhando. Para uma nordestina, o Rio de Janeiro é a prova da comunhão violenta entre naturezacultura. A exuberância da rocha, da floresta, do mar, pow!, nos cega. A cidade superlotada, as favelas nos morros, pow! pow! pow! pow! pow! pow! É sempre muito. É sempre tudo aomesmotempoagora. Não há economia na exposição dos contrastes: a beleza, o caos, a riqueza e a pobreza. A violência está sempre latente. Ela pulsa na cidade que não para, não para, não para. Aquele homem negro de macacão, parado, sobre o telhado; a floresta tropical ao fundo – um enigma –, avança sobre ele, sobre nós e sobre a construção.
Da primeira vez que vi a fotografia do homem dormindo no telhado – a primeira da série de Baigur –, relembrei de um trecho de “Separação estética, comunidade estética” (texto sem tradução para o português) de Jacques Rancière. No ensaio, o filósofo conta um causo, publicado em um jornal de esquerda, durante a revolução francesa. Um marceneiro trabalha em uma mansão colocando o piso em um dos cômodos da casa. Com a janela aberta, o trabalhador consegue ver o jardim da residência e o horizonte. Ele decide parar de trabalhar para apreciar a vista da janela da propriedade. Rancière entende a decisão do marceneiro como uma ruptura estética (e política). O trabalhador faz do lugar de trabalho e de sua exploração um lugar de prazer. Ele escolhe parar de trabalhar e tirar um tempo do seu tempo de trabalho para contemplar a paisagem, no lugar do dono da casa.
As 50 imagens de Maria Baigur, reunidas e disponibilizadas como cartões postais, mobilizam o lugar de trabalho como lugar de contemplação: A vista é free. Indo mais além, os cartões-postais nos fazem lembrar das férias em um país exótico, longínquo, contadas em resumo para uma pessoa que não tem acesso ao que o narrador está desfrutando. Em Baigur, o resumo das férias, nos postais preto-e-branco, são homens trabalhando. A artista faz uma espécie de giro de sentido com a escolha do formato: o cartão-postal. Nesse fio tensionado estão as férias na cidade paradisíaca e os homens que nunca podem parar de trabalhar. “Homens lentos” que não têm direito a férias.
Apesar de Baigur fotografar na mesma altura de quem ela “captura”, lá do alto, as distâncias entre artista e trabalhadores, junto do preto-e-branco, arrastam para as imagens outras relações de proporção e perspectiva entre as coisas enquadradas na foto. Um possível tom voyeurístico – fotografar gente que não sabe que está sendo fotografada – vai sendo borrado no meio da quantidade de telhados, fachadas espelhadas, e a floresta e o céu. O sujeito fotografado desaparece. Está lá mas é um pontinho, um traço, imprensado pela paisagem. Essa espécie de apagamento formal, surgido na dificuldade de enxergar, por vezes, os trabalhadores nas fotos de Baigur, pode ser lido novamente na esteira da definição dos “homens lentos”. Milton Santos escreve que o processo de descoberta da cidade fabulada por esses homens não é de forma alguma pacífica. Seu movimento arrastado desenha rotas que são sempre choques de temporalidades, entre a rapidez, a lentidão e a pausa.
A fotografia do homem dormindo em seu local de trabalho nos expõe o último lastro de liberdade não apreendida pelo capital – o sono, como nos explicou Jonathan Crary. Maria Baigur acrescenta mais uma camada à ruptura estética produzida pelo marceneiro que deixa de trabalhar para apreciar a vista na casa do patrão: é preciso dormir. Apenas 43% dos cariocas podem dormir as 8 horas diárias recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. Os cariocas passam em média 2 horas diárias indo e voltando do trabalho. É um dos piores índices de locomoção mundiais. O tempo gasto no trânsito, indo ou voltando do trabalho, é tirado do tempo de sono dos “homens lentos”.
Aquele homem dormindo, no cantinho do telhado, em busca de sombra, capturado pelas lentes de Maria Baigur, nos repete dormindo:
Preciso dormir.
Preciso sonhar.
Preciso parar.
O homem dormindo no local de trabalho paga tanto a contemplação da vista da cidade como seu tempo de sono com seu trabalho precário, mal pago e invisível em cima do telhado. Lá do alto, nas coberturas do Leblon, a vista parece free, gratuita, mas não é. Nunca é.
Natália Quinderé
25 de maio de 2022
THE VIEW IS GRÁTIS BUT IT IS NOT
In 2017, when the third largest hotel chain in Brazil, BHG S.A – Brazil Hospitality Group, announced 100% of the purchase of the Hotel Marina Palace and the closure of its activities for about 4 years, Maria Baigur decided to photograph from the inside to the outside the same window on all floors of this traditional hotel. A game of repetition and difference of the overwhelming view of the carioca waterfront. The Marina, known for its red neon sign, which Marina Lima sang in the late 1980s, is located on the most expensive square meter in Brazil. Avenida Delfim Moreira, number 630. A hotel by the sea, in Leblon. Its average price per square meter, in 2021, was worth 40,000 reais. Baigur, while photographing the Marina series (still unpublished), saw from his penthouse a worker sleeping on the roof of one of the many buildings in the vicinity.
It is from the encounter between an artist working on the roof of a hotel and a worker sleeping on the roof of another building that the Angelus series emerges. Maria Baigur, in 2018, decides to enter hotels on the coast of Rio de Janeiro to forge these images from the top of the rooftops of the south zone – an upscale region of the city of Rio de Janeiro. Photo number 1, where a body can be seen at rest, looking for a little bit of shade, on a sloping roof, with the sun at its height, seems to be an exception to the set of images captured by this artist. Baigur began to photograph men, mostly black, working on the roofs. The series' cinematographic and bibliographic references arrived later: The Exterminating Angel (1962) by Louis Buñuel + Wings of Desire (1988) by Win Wenders + Walter Benjamin's reading of the painting Angelus Novus (1920) by Paul Klee.
Baigur first showed me the Angelus images in early 2021. We were confined. Me, the mother of a pandemic baby and a child without school. Baigur, also mother of a child, without school as well. The pandemic harshly revealed the overload of invisible and unpaid work necessary for mothering. On the other side of the gap, confinement also materialized the essential services so that we (from the middle class) could fulfill social isolation at home. Men on bicycles loaded with bags delivered our grocery groceries and drugs from the pharmacy. Third-party couriers would drive through a now-deserted town on their motorbikes to deliver restaurant food orders to us. In addition to food and medicine, it was necessary to keep the houses running – electricity, water, sewage, garbage removal, the telephone network, the internet, etc. Of this immense network of workers who kept our homes, we don't know name or face.
In the 1990s, Milton Santos opposes men who make multiple plane trips around the world and manage to cross cities quickly with “slow men”. “Slow men” would be common people, poor people who have to cross the city to work, daily. Santos, in his analysis, values slowness – at the expense of speed. The “slow men” would be the only ones capable of fabulating, producing new relationships, in the dragged movement, with the city and the world. Fast men, in turn, would not have this capacity for fabulation, as their imagination would be stiffened by prefabricated images. Images reproduced by capital. The “slow men”, in the pandemic, were spat to the surface in double exposure. They were exposed to the virus and exposed in the scene of their work, indispensable. We - bourgeois, confined, working from home, started to observe them in motion.
The “ordinary” man at work is what Maria Baigur captures in Angelus. But in capturing these scenes of invisible, precarious and poorly paid work, the landscape of the city of Rio de Janeiro is being built before us. The stone jungle, the rainforest, the sea, the yachts, the people on the beach, the satellite dishes, the satellite dishes, the satellite dishes, and the men working, working, working. For a northeastern woman, Rio de Janeiro is proof of the violent communion between natureandculture. The exuberance of the rock, the forest, the sea, pow!, blinds us. The overcrowded city, the slums on the hills, pow! pow! pow! pow! pow! pow! It's always a lot. It's always all atthesametimenow. There is no moderation in exposing contrasts: beauty, chaos, wealth and poverty. Violence is always latent. It pulses in the city that doesn't stop, doesn't stop, doesn't stop. That black man in overalls, standing on the roof; the tropical forest in the background – an enigma –, advances on him, on us and on the construction.
The first time I saw the photograph of the man sleeping on the roof – the first in the series by Baigur –, I recalled an excerpt from “Aesthetic separation, aesthetic community” (currently, without Portuguese translation) by Jacques Rancière. In this essay, the philosopher tells a story, published in a left-wing newspaper, during the French Revolution. A woodworker labors in a mansion laying the flooring in one of the rooms in the house. With the window open, the worker can see the house's garden and the horizon. He decides to stop working to enjoy the view from the property's window. Rancière understands the cabinetmaker's decision as an aesthetic (and political) rupture. The worker makes the place of labor and its exploitation a place of pleasure. He chooses to stop working and take time out of his work time to contemplate the landscape, instead of the owner of the house.
The 50 images by Maria Baigur, gathered and made available as postcards, mobilize the workplace as a place of contemplation: The view is free – The view is grátis. Going further, the postcards remind us of vacations in an exotic, far away country, told in short for a person who does not have access to what the narrator is enjoying. In Baigur, the summary of the holidays, in the black-and-white postcards, is men at work. The artist makes a kind of sense turn with the choice of format: the postcard. In this tensioned thread are the holidays in the paradise city and the men who can never stop working. “Slow men” who are not entitled to vacations.
Despite Baigur photographing at the same level as the people she “captures”, from the heights, the distances between artist and workers, along with black and white, bring to the images other relations of proportion and perspective between the things framed in the photo. A possible voyeuristic tone – by photographing people who don't know they are being photographed –and so are being blurred amidst the amount of roofs, mirrored facades, and the forest and sky. The photographed subject disappears. It's there but it's a dot, a trace, sandwiched by the landscape. This kind of formal erasure, arising from the difficulty of seeing the workers in Baigur's photos, can be read again in the wake of the definition of “slow men”. Milton Santos writes that the process of discovering the city fabled by these men is by no means peaceful. Its dragging movement draws routes that are always clashes of temporalities, between speed, slowness and pause.
The photograph of the man sleeping in his workplace exposes us to the last ballast of freedom not seized by capital – sleep, as Jonathan Crary explained to us. Maria Baigur adds another layer to the aesthetic rupture produced by the woodworker who stops working to enjoy the view at the boss's house: you need to sleep. Only 43% of cariocas can sleep the 8 hours a day recommended by the World Health Organization. Cariocas spend an average of 2 hours daily commuting to and from work. It is one of the worst rates of locomotion in the world. Time spent in traffic, commuting to and from work, is taken from the sleep time of “slow men”.
That man sleeping, in the corner of the roof, looking for shade, captured by Maria Baigur's lens, repeats us sleeping:
Need to sleep.
Need to dream.
Need to stop.
The man who sleeps poorly in the workplace pays for both the city view and his sleep time with his precarious, invisible work on the roof. From up there, on the rooftops of Leblon, the view seems free, de graça, but it's not. Never is.
Natália Quinderé
Trad. Renata Azzi